Vida & Obra


Gil Vicente

Figura verdadeiramente genial, pouco se sabe dele até 1502. Diz-se que nasceu em 1465 ou 1466 e morreu entre 1536 e 1540. Não se sabe a profissão nem a condição social de Gil Vicente. Se, por um lado, pensa-se em uma origem popular e burguesa, por outro, pensa-se ser a mesma pessoa o ourives que cinzelou a custódia de Belém com o ouro trazido de Quiloa por Vasco da Gama, em 1503 e, se for, era um homem rico, o que gera uma contradição na medida em que o Gil Vicente dos autos se declara pobre.

Recentemente, comprovou-se a existência de um contemporâneo Gil Vicente, alfaiate, que, em 1504, fez uma espécie de representação para a festividade do Corpo de Deus e que foi procurador dos “mesteres” na Câmara de Lisboa. Ainda assim, a hipótese anterior é mais aceita, isso porque foi encontrada, na margem do documento que nomeia Gil Vicente Mestre da Balança da Casa da Moeda de Lisboa, a inscrição: “Gil Vicente, trovador, Mestre da Balança”.

No século XVI, surge a idéia de Gil Vicente como “mestre da retórica” do, então, futuro rei D. Manuel. Há, ainda, a figura de um mestre carpinteiro homônimo do século XV.

Nada pode ser comprovado, pois, Vicente era um nome comum à época, até porque S. Vicente é o patrono de Lisboa.

O que se sabe é que foi colaborador do Cancioneiro geral de Garcia de Resende, que já menciona, em Miscelânia, a atividade teatral vicentina entre os notáveis acontecimentos daquele tempo.

Foi em 7 de junho de 1502 que Gil Vicente apresentou, na câmara de Dona Maria de Castela, esposa de Dom Manuel, o Venturoso, em comemoração ao nascimento de D. João III, o Auto da visitação,também chamado de Monólogo do vaqueiro, em que um simples homem do campo expressa sua alegria pelo nascimento do herdeiro, desejando-lhe felicidades.

Escrita em castelhano, à moda de Juan del Encina, essa constitui a peça inaugural do teatro português. Antes de Gil Vicente o que havia eram os momos, os arremedillhos e os entremezes, todos quadros ou esquetes de caráter anedótico, e, ain­da as encenações religiosas, bíblicas ou litúrgicas. Tudo muito rudimentar, muito singelo, sem que se possa encontrar, aí, uma verdadeira intenção teatral.

Como o Auto da visitação tivesse impressionado os reis e a corte, lhe é solicitado que recite, novamente, a peça no Natal. Em vez de o fazer, Gil Vicente apresenta em seu lugar o Auto pastoril castelhano, dando início a uma vasta produção, dentro do teatro popular, onde atua por mais de trinta anos, até 1536, quando é representada Floresta de enganos. Nesse período, teria sido uma espécie de organizador dos espetáculos e festas palacianas.

Depois dessa data, novamente mergulha-se no mistério: não há mais notícias suas. Sabe-se, apenas, que preparava uma edição de sua obra quando faleceu.

Gil Vicente escreveu quarenta e seis peças entre satíricas, medievais, modernas, comédias e farsas como: Auto da alma, Auto da barca do inferno, Farsa de Inês Pereira, Quem tem farelos?, Auto da fé, Auto da Lusitânia, Auto da alma, entre outros. Alguns de seus autos foram publicados, à época, em folhetos de cordel que depois foram reeditados.

Algumas dessas edições – entre elas o Auto da Barca do Inferno – foram proibidas pela Inquisição. Foi em 1562 que Luís Vicente, seu filho, publicou a Copilaçam de todalas peças de Gil Vicente. Ainda que incompleta e com alterações em vários textos, essa compilação foi protegida pela viúva de D. João III.

Como homem de transição, Vicente viveu o mais extraordinário momento da vida portuguesa. Era o auge do período manuelino. No reinado de D. Manuel, o Venturoso, em 1498, Vasco da Gama ultrapassara o Cabo das Tormentas, inaugurando a rota comercial em direção às especiarias orientais; em 1500, houve o descobrimento do Brasil; nos anos seguintes, as cidades de Lisboa e Porto transformaram-se em grandes centros comerciais (Lisboa passa a ser a capital mundial da pimenta). O processo de urbanização torna-se intenso, o lucro mostra-se aparentemente fácil, o campo é abandonado. Há todo um ambiente intelectual renovador e agitado no primeiro terço do século 16, de que Portugal não passa à margem.

Assim, Gil Vicente não remonta à Antigüidade clássica, opção estética do Renascimento, mas também não faz seu texto portador do nacionalismo ufanista do seu tempo. Por outro lado, se tem as suas fontes em valores tradicionais dispersos legados pela Idade Média, como afirma António José Saraiva, não dei­xa de participar – quer nos elementos estéticos, quer nos elementos ideológicos – de uma incipiente atmosfera humanista e renascentista. Quer dizer, ao lado de algumas características tipicamente medievais como a religiosidade, o uso de alegorias, o uso de redondilhas, a não-obediência às três unidades do teatro clássico, percebem-se características humanistas, tais como a presença de figuras mitológicas, a condenação à perseguição aos judeus e cristãos-novos (de acordo com a política de assimilação tolerante de D. Manuel) e a crítica social.

Essas questões talvez expliquem o fato de o teatro vicentino se apresentar muito variado nas suas formas: o auto pastoril(caracterizado por monólogos ou diálogos cômicos de pastores, com traços de lirismo folclórico, às vezes combinados com alegorias); a moralidade religiosa(com seu tema da redenção, com figuras teológicas, como os que narram o nascimento ou a ressurreição de Cristo ou, numa outra feição, mais alegórica, dão um ensinamento religioso ou moral através de personagens feitas de abstrações personificadas, como os vícios e as virtudes); a narrativa bíblica (contando a vida dos santos); a fantasia alegórica (mais tarde chamada de tragicomédia); a farsa episódica(gênero eminentemente popular, com intenção satírica); e, ainda, o auto narrativo (espécie de contos e romances transpostos para o teatro).

É bom lembrar que essa classificação é meramente didática, na medida em que não há forma pura, por exemplo: o auto pastoril e a moralidade, não raras vezes, andam juntos, assim como a fantasia alegórica de tema religioso e a de tema profano. O Auto da barca do inferno, por exemplo, tem como propósito a sátira social, aí, a religião serve de pretexto para a sátira profana.

Considerando-se, entretanto, a estrutura cênica, pode-se dizer que a criação dramática vicentina atua sobre dois pólos: o auto narrativo (ou de enredo) e a alegoria (uma vez que ela emoldura uma série de quadros. Veja-se, por exemplo, o Auto da barca do inferno, onde cada entrada em cena de um novo personagem configura um novo quadro aparentemente independente, unido apenas pela alegoria).

O auto narrativo é o que mais se aproxima hoje do teatro tal qual o concebemos, entretanto não encontramos nele a unidade de ação. A unidade da peça reside, em geral, na personagem que serve de eixo propulsor às diversas ações. É o caso, por exemplo,da lnês Pereira, de A Farsa de Inês Pereira,que se revela em seus dois namoros e casamentos sucessivos. O tempo passa, vem a noite, vem o dia, e em momento algum ela sai de cena.

A estrutura mais comum, porém, a que integra o maior número de elementos vicentinos é a do auto alegórico, que, talvez, melhor represente a sua concepção de criação dramática. É o caso do Auto da barca do inferno.

Diz-se que os anos 1517-1519 marcam o apogeu da moralidade religiosa em Gil Vicente. É o período em que escreve a série das três barcas: do Inferno, da Glória e do Paraíso. Ainda, assim, delas, a obra-prima é a primeira.

Segundo a História da Literatura Portuguesa, de José António Saraiva e Oscar Lopes, “o todo de Gil Vicente talvez seja a expressão mais elevada do ideal da arte gótica”. Isso se justifica pela linha depurada, pela força das personagens, pela invocação dos mistérios divinos, pelo contraste entre espírito e matéria.

Outra marca da criação vicentina éa caracterização das personagens através do diálogo. Melhor dizendo, o processo de autocaracterização que as torna origem e fim em si mesmas, sem a necessidade de serem introduzidas por um apresentador, um intermediário

E aí, com traço estilístico simples, com uma sintaxe sintética, própria do medievalismo, seu verso sugere toda a vivacidade das linguagens coloquiais, de acordo com o estilo e a condição social das personagens. Quer dizer: o fidalgo fala como fidalgo (“Que me deixeis embarcar./ Sou fidalgo de solar, /é bem que me recolhais); a alcoviteira, como alcoviteira (“Passai-me por vossa fé,/ meu amor, minhas boninas/ olhos de perlinhas finas”); o corregedor, como corregedor (“Nom é de regulae juris, não!”)...

uma língua intencionalmente enriquecida de variantes: palavras na forma arcaica e moderna; na forma nobre, da corte, e popular; pronúncia portuguesa e hispanizante e ainda o fraseado latino. Ele une a cultura popular à cultura literária, mesclando estilos e tons.

Da mesma forma, mistura o trágico e o cômico, como acontece no Auto da barca do inferno (que encerra pequenas farsas), incorporando-os à própria criação das personagens. Esse processo, além da grandeza poética e filosófica, além da intenção de crítica social do texto vicentino, torna a criação dramática vicentina reveladora de uma autêntica concepção de espetáculo teatral, isso num tempo em que nada sugere a existência de uma companhia profissional de atores.

(por Jane Tutikian)

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Opinião do Leitor

flavielly
sao apulo

muito booum

07/04/2014

Agatha

Madela
Ceará

Muito bom!

03/05/2013 11:09:22