“Absorve, registra e sintetiza uma época ao mesmo tempo em que a inventa.”
Sergius Gonzaga
Romance de aventura frequentemente animado por sopro épico; romance político sobre os anos dramáticos vividos pelo Brasil e pelo Chile, cujos governantes eleitos foram depostos por golpes militares; romance de formação em que os protagonistas juvenis realizam uma áspera aprendizagem da vida, conhecendo o exílio, a dor, o medo, a impotência, a traição, mas também a audácia, a camaradagem, o amor e o heroísmo nas ações cotidianas; romance da desilusão, do fracasso revolucionário, das subjetividades fraturadas, ainda que a esperança se renove no final do texto; romance de vanguarda marcado por procedimentos inovadores, quebra da linearidade temporal e espacial, bruscas mudanças de foco, múltiplas vozes narrativas, uso intenso do monólogo interior e da montagem cinematográfica; romance que absorve, registra e sintetiza uma época, ao mesmo tempo em que a inventa, O amor de Pedro por João é uma dessas ficções de larga abrangência que persistem para sempre na memória dos leitores.
Ao lançar, em 1981, O amor de Pedro por João – um dos mais ambiciosos e ousados romances políticos brasileiros –, Tabajara Ruas rompeu com a tradição do gênero no país, fugindo do academicismo técnico, do provincianismo das formas e da linguagem e, sobretudo, de certo gosto por ideias feitas (ideologias), essencialmente simplificadoras e expostas de maneira direta, sem a adequada mediação simbólica. Emulado pelas grandes narrativas latino-americanas do período (de Llosa, Rulfo, Carpentier e Fuentes), ultrapassou o realismo trivial ainda vigente no campo das ficções sobre o destino das sociedades e dos militantes sociais, e produziu um texto de fulgurante complexidade estrutural e não menor poder de fascinação dramática.
Os sucessivos jogos temporais, as súbitas quebras de espaço, as mudanças inesperadas de foco, o cruzamento de diálogos referentes a situações diversas criam uma atmosfera de invenção e surpresa, requerendo o olhar atento do leitor, como se este tivesse diante de si um quebra-cabeça a ser montado. Contudo, à medida que a narração avança, as peças vão se encaixando e o sentido (ou a falta de sentido) dos gestos humanos e da marcha da História começa a se esclarecer, iluminando o drama dos indivíduos e o de suas comunidades.
Tabajara Ruas move-se em um universo historicamente datado – o grosso das ações transcorre entre 1968 e 1973, período em que as contestações juvenis assumem, em várias partes do planeta, uma dimensão revolucionária, muitas vezes voltadas para a saída guerrilheira. O foco narrativo centra-se no Brasil ditatorial e no Chile durante o golpe que derruba o governo democrático de Salvador Allende, e o escritor desvela as complicadas articulações entre três gerações de lutadores que escolhem a clandestinidade e a luta armada em seu afã de mudar o mundo.
Um esplêndido painel daqueles tempos ásperos ergue-se diante de nós, sem que o autor caia no panfletarismo ou em visões dogmáticas. Interessam-lhe, acima de tudo, as escolhas, os projetos, as reações e contradições de cada um de seus múltiplos personagens face à voracidade tumultuosa dos acontecimentos. Assim, a experiência humana individual (a coragem e o medo, o ódio e a afeição, as certezas e as dúvidas) é tão relevante quanto o tom épico que por vezes impregna a narrativa, ou quanto os rumos da militarização do cotidiano, levada a cabo pelos adeptos da ideia da Revolução.
Paradoxalmente, este romance sobre uma época de convulsão política é também um romance de formação existencial, pois os protagonistas que mais sobressaem na trama são jovens carregados de um idealismo próximo da ingenuidade e que, apesar de seu voluntarismo, percebem a desintegração do universo dos sonhos juvenis, corrompido definitivamente por uma realidade sórdida e brutal. Para eles, o fracasso das ilusões políticas equivale a um doloroso processo de amadurecimento em que o amor e a amizade têm peso decisivo. O final do relato é pungente, mas, ao mesmo tempo, um sopro de esperança e de vontade de futuro o contamina, transformando a derrota em aprendizagem para outros dias, melhores e mais luminosos.
Sergius Gonzaga
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