No verão de 1956, Jack Kerouac trabalhou por 63 dias como vigia de incêndios no Desolation Peak, monte situado a cerca de 2.000 metros do nível do mar, no estado de Washington, no extremo Noroeste dos Estados Unidos. Ele estava em busca de um sentido para a vida, uma resposta para os questionamentos que o oprimiam. Deu de cara consigo mesmo, sem o verniz do álcool e das drogas. Rodeado pela paz e pelo isolamento da natureza, viu-se confrontado com a finitude e a solidão. Essa acabou sendo uma das últimas experiências “on the road” antes do lançamento do livro homônimo, que o catapultou à fama em 1957.
Anjos da desolação, pela primeira vez traduzido e publicado no Brasil, é o único livro a ser diretamente transcrito dos diários de Kerouac, por isso seu caráter documental – como uma carta íntima tornada pública. Em mais do que qualquer outro escrito do autor, o ritmo da fala pode ser sentido a todo instante. Sua prosa jazzística alcança a rapidez do real, a cadência dos diálogos coloca o leitor como um participante privilegiado nas aventuras de Jack Duluoz (alter ego de Kerouac) e dos seus companheiros, personagens recorrentes de outros livros: Cody Pomeray (Neal Cassady), Irwin Garden (Allen Ginsberg), Raphael Urso (Gregory Corso) e Bull Hubbard (William Burroughs), entre outros.
Na opinião da crítica e dos mais fiéis admiradores do autor, Anjos da desolação é um dos livros mais autênticos de Kerouac. Por isso chama ainda mais a atenção o fato de ter sido inicialmente concebido como duas obras separadas: a primeira metade foi escrita na Cidade do México em outubro de 1956 e a segunda, intitulada Passando, somente em 1961. Embora os eventos narrados sejam sequenciais – a estadia de Kerouac na montanha e seu posterior retorno ao convívio com os amigos, ao ambiente febril de São Francisco – e permeados por uma certa paz melancólica, as duas passagens diferem bastante uma da outra. Enquanto a primeira é mais intimista, a segunda dá lugar às bebedeiras, ao envolvimento com mulheres e às andanças características das outras narrativas.
Esta edição é complementada por dois textos fundamentais para a contextualização da obra: primeiramente o de Seymour Krim, escritor e crítico literário que participou da geração beat. Krim concebeu esta apresentação no calor do lançamento de Anjos da desolação, em 1965, o que traz um olhar vívido sobre a recepção do livro na época, com Kerouac ainda vivo. Em seguida, temos o depoimento de Joyce Johnson, escritora norte-americana que conta como conheceu Kerouac e de que maneira acabou se tornando um personagem (sob o nome de Alyce Newman) deste romance, que poderia ser classificado como um “vasto épico (...) com milhões de personagens”, como Kerouac definiu a própria vida do alto do Desolation Peak.
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