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Um mergulho em Walden: a tradutora Denise Bottmann conta como foi traduzir Thoreau

01/12/2010

- Por L&PM

Denise Bottmann mergulhou em Walden, o lago em cujas margens viveu Thoreau. Descobriu um texto mais profundo do que aquele lido na adolescência – sua “bíblia juvenil”. E nadando entre a complexidade, o senso de humor, a variação de recursos e os trocadilhos do escritor, só respirou aliviada quando a tarefa de traduzir Walden, a vida nos bosques estava cumprida. O que ela sentiu antes, durante e depois dessa aventura (de certa maneira, tão solitária como a de Thoreau) você lê aqui. Em uma entrevista que também revela a natureza de ser tradutor.

L&PM -  Qual foi o primeiro sentimento que lhe ocorreu quando você foi convidada para traduzir "Walden" e como foi o processo de tradução da obra?  

Denise Bottmann : Quando a L&PM me convidou para fazer o Walden, fiquei encantada. Afinal, Walden é um dos monumentos do pensamento oitocentista americano, obra que mesmo no século XX ainda guardava fortes ressonâncias e intenso apelo entre a contracultura dos anos 60 e 70, afora sua revitalização entre as correntes ecológicas contemporâneas. Acrescia-se a isso que Walden tinha sido uma espécie de ícone pessoal para mim, em meus 17-18 anos de idade. Então tomei o convite não só como uma honra, mas também quase como uma revisita à minha adolescência.

Mas aí, quando comecei a tradução, foi uma surpresa. O Walden com o qual eu andava para cima e para baixo, minha bibliazinha juvenil, era uma tradução, e eu não conhecia o original. Foi quando me dei conta da complexidade do texto, sua tessitura, seus recursos de estilo, seu fenomenal senso de humor, as variações de registro (coloquial, solene, sentencioso, humorado – e também oral, pois ele utilizou anotações de palestras que deu em Concord depois de sair de Walden), a quantidade de trocadilhos e jogos de palavras, as infinitas referências bíblicas, literárias, filosóficas, históricas, regionais, biográficas, a precisão descritiva e terminológica ao tratar da flora e da fauna, além da própria história da redação de Walden (foram sete anos que Thoreau passou escrevendo e reescrevendo, alterando, burilando, trabalhando o texto - até atingir sua forma final, foram nada menos que cinco versões!).

L&PM - Você leu apenas o original em inglês ou leu também a tradução anterior em português, que já havia saído no Brasil?

Denise Bottmann : Para a tradução, usei várias edições americanas comentadas, que contribuíram para elucidar muitos aspectos e elementos dessa complexa construção que é Walden. Nem sempre leio traduções anteriores, mas neste caso achei que seria importante ver o tipo de tratamento dado à obra. No Brasil, tinham sido publicadas duas traduções diferentes, uma de E. C. Caldas, nos anos 1960, pela Ediouro, e a outra de Astrid Cabral, nos anos 1980, pela Global. A de Astrid (que eu não conhecia), li atentamente. Seu tratamento não tem uma ênfase propriamente "referencial" ou "estilística", que foi o partido que adotei, e sua leitura constituiu uma surpresa muito agradável: é um trabalho sério, íntegro, esforçado, de  visível dedicação ao texto. A de Caldas (que era minha bíblia adolescente) não se prestou muito a uma releitura mais, digamos, "técnica" e não me dediquei muito a ela.

L&PM Você considerou essa tradução mais complexa  que outros livros que você já tinha traduzido? O que foi mais difícil no processo de tradução?  

Denise Bottmann: Ah, todo ele. É um livro incrivelmente elaborado, bastante opaco, e mesmo os comentadores a que recorri não têm plena clareza de várias passagens, e muitas referências continuam abertas a interpretações variadas. Algumas continuam simplesmente inexploradas, pelo menos entre os estudos que consultei. Sinceramente, trata-se de uma das traduções mais complexas que enfrentei em 25 anos de ofício. Um desafio sem tamanho. Um encanto e uma emoção constantes. Eu pretendia fazer uma tradução anotada, mas acabamos considerando que não seria o caso. Então torço para que o texto seja pelo menos legível e agradável, porém à primeira vista será inevitavelmente um tanto opaco ao leitor - mas tenho certeza também de que poderá se revelar como um manancial de descobertas a se fazerem lentamente, desapressadamente, pelo leitor mais atento, mais amoroso. Pelo menos as pistas estão lá, e tentei preservá-las ao máximo.

L&PM - Quanto tempo durou  a  tradução  de Walden?  

Denise Bottmann: O triplo do que eu tinha calculado, pois inicialmente eu pensava que se tratava de uma obra de complexidade média, normal. Felizmente a editora entendeu e concedeu todo o prazo que eu julgasse necessário. Foram seis meses, trabalhando de 10 a 12 horas por dia.

L&PM - O livro contém alguns poemas de Thoreau. Nessas situações você optou por deixar o original embaixo da tradução. Qual é a diferença de traduzir poesia e prosa?

Denise Bottmann: A questão é complexa: há toda a diferença do mundo, são coisas totalmente distintas. Mas, como o próprio original trazia alguns poemas em latim e as traduções de Thoreau ou de outros autores para o inglês, pareceu-me que seria interessante o leitor acompanhar as diversas variações. E com isso pareceu razoável manter o texto das outras poesias, mesmo quando eram em inglês. Mas não fiz uma tradução "poética" dos poemas - e que, de todo modo, são em sua maioria razoavelmente simples -, pois na verdade não tenho esse traquejo.

L&PM - Qual a primeira pessoa que leu a tradução? 

Denise Bottmann: No caso de Walden, que foi uma experiência surpreendente, conversei muito com Federico Carotti, meu marido. Ele acompanhou de perto minhas pesquisas e soluções ao longo dos meses, e depois lemos duas vezes toda a obra em voz alta, acompanhando pelo original. Ele ajudou a arredondar a coisa, a aprimorar o texto em inúmeras passagens e, o mais importante, a checar e conferir as costuras que geralmente não aparecem ou, pelo menos, não deveriam aparecer na superfície do texto, mas que são os elementos que fazem a amarração, isto é, que em seu conjunto mantêm o arcabouço que dá sustentação interna à obra. Foi um apoio inestimável.

L&PM - De que forma o trabalho de tradução influencia  na sua vida? A história que estás traduzindo  é capaz de mudar  alguma coisa na sua visão de mundo? Denise Bottmann: Naturalmente, toda tradução é enriquecedora, ajuda a tornar nossa visão das coisas menos simplista, mostra outras formas de estar no mundo e sempre se aprende muito. No caso de Walden, para além do conteúdo mais "metafísico", aprendi bastante sobre as antigas práticas de taubilhamento e emboçamento, hábitos de aves e peixes, técnicas de corte e empilhamento de gelo, usos de época etc. Mas, tirando a brincadeira, quando a atividade principal de nossa vida é traduzir obras teóricas ou reflexivas, naturalmente deve se processar alguma alquimia psíquica da qual a gente não se apercebe. E sem dúvida a gente sempre reflete sobre os argumentos do autor, tenta entender, concorda, discorda, dialoga etc.  

L&PM - Há os  que dizem  que o livro suscita uma leve melancolia. Thoreau, entretanto, disse que não pretendia “escrever uma ode à melancolia, e sim trombetear vigorosamente como um galo ao amanhecer”. Que sentimentos Thoreau despertou em você com Walden ou A vida nos bosques?

Denise Bottmann: Aliás, essa frase que é usada como epígrafe do livro é muito bonita e por si só mereceria vários desdobramentos. As referências mais diretas, quando ele fala em "uma ode à melancolia" [an ode to dejection], remetem explicitamente a Dejection: an Ode, de Coleridge, e também a Keats, com sua Ode on Melancholy. Desse ponto de vista, é interessante considerar como os grandes expoentes do romantismo inglês aqui se entretecem discretamente. É muito lindo esse trecho: está presente nele o louvor de Thoreau à manhã, não só em termos naturais, mas como metáfora do vigor da vida, da energia espiritual. A frase continua: "... um galo ao amanhecer, no alto de seu poleiro, quando menos para despertar seus vizinhos" - e já se nota a lavra estilística extremamente visual de Thoreau, mesclando registros do elevado ao coloquial, de entremeio com tons cômico-irônicos e um laivo crítico levemente desapiedado. Há também e sobretudo a clara expressão de que Thoreau entendia  como missão "sacudir" seus semelhantes, arrancá-los à rotina estreita e filistina que ele tanto abominava, para abri-los à plenitude da existência, tal como se manifesta no amanhecer. Não à toa , ao dar por concluída sua tarefa de "galo" de despertar o próximo, anunciada na epígrafe, Thoreau encerra o livro retomando a imagem do alvorecer e o chamado para a vida: "Só amanhece o dia para o qual estamos despertos. O dia não cessa de amanhecer. O sol é apenas uma estrela da manhã." Pessoalmente, pouco tenho em comum com essa concepção transcendentalista que Thoreau compartilhava com seu círculo mais próximo, e minha relação com as obras do pensamento não passa necessariamente, nem essencialmente, pelo aspecto mais, digamos, sentimental, emotivo ou doutrinário. Mas considero interessantíssimo o percurso intelectual de Thoreau, que conseguiu escapar, a meu ver, de uma perspectiva  tendencialmente farisaísta que às vezes transpira ou até transborda dos textos de outros transcendentalistas de linhagem unitarista. Penso especialmente em Emerson, que foi uma espécie de mentor seu. O grande contraponto a Emerson, em Walden, é Amos Bronson Alcott, o naturalista, filósofo e pedagogo (pai de Louisa May Alcott, a futura autora de As mulherzinhas) sobre quem Thoreau discorre quase com veneração no final do capítulo "Antigos Habitantes e Visitas Invernais" - aliás, quando ele se refere a Alcott como "Velha Mortalidade, ou melhor, Imortalidade", temos uma das mais manifestas remissões a Pilgrim's Progress, que tanto se multiplicam menos explicitamente na obra. Aliás, cabe lembrar que uma das fontes para o estilo de pregação adotado em extensas passagens de Walden é a obra de Bunyan. Interessante notar nessa luta contra a tendência excessivamente doutrinária e normativista do transcendentalismo de seus companheiros: tem-se que, embora o terreno onde se instalou Thoreau em Walden pertencesse a Emerson, as referências a ele em Walden geralmente são bastante cáusticas e pelo menos em uma ocasião quase beiram o ofensivo.

L&PM - “Vivemos mesquinhamente, como formigas, embora conte a fábula que fomos transformados em homens muito tempo atrás; como pigmeus, lutamos com grous; é erro sobre erro, remendo sobre remendo; e nossa melhor virtude tem como causa uma miséria supérflua e desnecessária. Nossa vida se perde nos detalhes.” Neste trecho, Thoreau fala sobre a simplicidade e a forma como vivemos. O livro fez com que você mudasse de alguma maneira a sua forma de ver e entender e perceber o entorno?

Denise Bottmann: Não, de maneira nenhuma. Como disse antes, minha relação com obras de reflexão e doutrina é mais de tipo abstrato, não entendo a leitura como forma de "edificação moral", e ademais estou longe de compartilhar dessa linhagem em que se insere Thoreau,  no fundo bastante dogmática e um tanto arrogante. Mas considero muito interessante esse desenvolvimento especificamente "ianque", digamos assim, e julgo que Thoreau teve uma contribuição para o pensamento moral americano que nem sempre é plenamente percebida. O puritanismo  da Nova Inglaterra nessa versão "thoreauísta" me parece possuir uma força moral que ainda hoje guarda um certo frescor de autenticidade, digamos assim, capaz de exercer um certo apelo em jovens espíritos dispostos  a aceitar diretores de consciência. Esse trecho que você cita é muito bonito: a referência à fábula remete a Aeacus, rei da Enópia, filho de Júpiter. Quando seu reino foi devastado pela peste, ele pediu ao pai que o repovoasse transformando em homens as formigas que viviam num tronco de carvalho. E a luta entre os pigmeus e os grous foi extraída da Ilíada, aliás o único livro que Thoreau levou para Walden... Acho todo esse entrelaçamento de imagens muito bonito, e nesta passagem é feroz sua crítica frontal à hipocrisia da religião estabelecida, que ele acaba de arremedar na frase imediatamente anterior.

Agradeço muito à L&PM pela oportunidade. Em resultado do trabalho e das pesquisas em torno dessa tradução, acabei achando que aqui no Brasil não temos muito ideia da complexidade e amplitude do pensamento de Thoreau. Penso até em escrever alguma hora uma série de artiguinhos temáticos, tipo "lendo Walden".